A estética como revolução não é apenas uma metáfora poética — é uma urgência real. Num mundo saturado de imagens, ver com atenção tornou-se um gesto radical. Em África, onde o olhar foi colonizado durante séculos, retomar o acto de ver é um acto de soberania. Olhar é poder. Escolher o que vemos — e como vemos — é um manifesto silencioso, mas profundamente transformador.
Ver com consciência é resistir à anestesia visual imposta por algoritmos, publicidade e narrativas únicas. É reivindicar o direito de imaginar. E quando o continente africano se olha ao espelho com orgulho, lucidez e criatividade, a imagem devolvida é, ela mesma, uma revolução.
O olhar como território de disputa
Durante demasiado tempo, fomos vistos por outros. Agora, começamos a ver-nos — e a mostrar-nos — com os nossos próprios olhos. A estética deixou de ser concessão ao gosto dominante: tornou-se uma forma de insubmissão. O cabelo crespo usado com liberdade, os tecidos tradicionais reinterpretados, os corpos negros fotografados sem filtros — tudo isto é estética. E tudo isto é política.
Quando artistas africanos controlam o enquadramento, alteram o código. Deixam de ser objecto para se tornarem sujeito visual. Nesse gesto, abrem espaço a narrativas plurais, complexas e enraizadas — não apenas representações, mas presenças.
Moda como manifesto
Vestir-se é escrever no próprio corpo. Marcas como IAMISIGO (Nigéria), Maxhosa Africa (África do Sul) ou Projecto Mental (Angola) desafiam a lógica do fast fashion com peças que contam histórias, honram linhagens e experimentam identidade. Há desconstrução de género, celebração da ancestralidade, provocação estética. Cada colecção é um ensaio visual sobre o que significa existir — e resistir — no presente africano.
O vestir torna-se, assim, um território de liberdade. Um gesto visual com carga poética e política.
Arte como espelho e ruptura
Artistas como Zanele Muholi, com os seus retratos de identidades queer sul-africanas, ou Ana Silva, com tecidos queimados, camadas e bordados que dialogam com a memória, obrigam-nos a parar. A sentir. A repensar. Não são apenas obras “bonitas” — são fricções visuais, cicatrizes transformadas em estética. A arte africana contemporânea, sobretudo nas mãos de mulheres e dissidências, está a romper com os moldes coloniais da representação.
Olhar estas obras é reconfigurar a sensibilidade. Aceitar o desconforto como parte do processo de cura — estética, política, identitária.
Media e representação: quem controla o frame?
Durante décadas, a imagem de África foi filtrada por olhares externos. Mas isso está a mudar. Plataformas como OkayAfrica, Nataal, Afropunk ou The Native estão a redefinir o panorama mediático com uma curadoria estética própria, afrocentrada, indisciplinada. A nossa própria revista — This Is It — inscreve-se nesse movimento de reapropriação visual.
Fotógrafos como Edson Chagas, Lakin Ogunbanwo ou Omar Victor Diop recusam o olhar exótico e devolvem ao público africano a sua complexidade — com orgulho, humor e beleza. As suas imagens não ilustram — afirmam.
Ver, neste contexto, é reconstruir. Libertar o olhar dos filtros herdados. Começar de novo — com outros olhos, outras narrativas, outra luz.
Porque a estética não é supérflua. É estrutura. É linguagem. É poder. E num presente saturado de imagens, cultivar um olhar próprio talvez seja o mais silencioso — e mais poderoso — dos actos políticos.